Estudo histopatológico das alterações teciduais causadas pelo uso de piercing na língua

Estudo histopatológico das alterações teciduais causadas pelo uso de piercing na língua

* Prof. Dr. Artur Cerri
** Prof. Dr. Carlos Eduardo Xavier dos Santos Ribeiro da SilvaCarlos Eduardo Xavier dos Santos Ribeiro da Silva *

* Especialista, Mestre e Doutor em Estomatologia pela USP
Prof. Titular da Disciplina de Estomatologia da UNISA
** Especialista e Mestre em Estomatologia
Doutor pelo Depto de ORL/CCP da UNIFESP
Prof. Dr. das Disciplinas de Estomatologia e Pacientes Especiais da UNISA
DECRITORES: Piercing corporal – Hiperplasia – Mucosa bucal – Língua
KEYWORDS: Body piercing – Hiperplasia – Mouth mucosa – Tongue

RESUMO

Os autores apresentam pesquisa prospectiva das alterações teciduais provocadas pelo uso de piercing na língua, realizado através de biópsia incisional e analise histológica das espécies. Foram selecionados 100 pacientes usuários de piercing na língua, de ambos os sexos, com idades variando de 18 a 25 anos. Os resultados obtidos pelas biópsias demonstraram que 100% dos pacientes apresentavam alterações teciduais na área de inserção do piercing.

INTRODUÇÃO

Nos levantamentos epidemiológicos realizados no Brasil, observa-se que os problemas de saúde pública como a cárie e anomalias dentais, periodontopatias, mal oclusão, doenças infecciosas, são bastante estudados. Porém, os estudos relacionados às alterações presentes em mucosa bucal e ossos maxílo-mandibulares que afetam crianças e adultos ou mesmo outros tipos de populações, carecem de maiores informações referentes aos aspectos epidemiológicos. Com raras exceções, pouco se pode acrescentar à literatura nacional sobre esse assunto.(Cerri)
A cavidade bucal pela sua localização anatômica está sujeita a uma série de injúrias, quer sejam biológicas, físicas e químicas entre outras, propiciando a essa cavidade inúmeras lesões que variam desde simples reações inflamatórias até neoplasias locais, como o carcinoma espino celular (CEC), além de representar em muitos casos reflexos de doenças sistêmicas. O conhecimento da prevalência das doenças e suas alterações são de fundamental importância na elaboração de novas metodologias para o diagnóstico, prevenção e controle ou mesmo cura desses estados nosológicos.
Sonnis (1985), define a epidemiologia como qualquer fenômeno que apareça bruscamente ou de forma anormal na população. Para Frost (apud Sonnis, 1985), a epidemiologia é a ciência dos fenômenos das doenças, não como ocorrem em indivíduos, mas como são vistos em grupos populacionais, assim como o modo de sua natural ocorrência e disseminação entre as pessoas e a relação desses fenômenos característicos como as numerosas condições de hereditariedade, hábitos e meios que o determinam.
O diagnóstico de qualquer doença deve estar respaldado no exame clínico minucioso e completo. Assim, pode-se afirmar que a soberania clínica é real, desde que a avaliação seja realizada com qualidade. Por outro lado, a solicitação rotineira de exames complementares adequados, muitas vezes negligenciados, poderia constituir-se num importante elemento para a confirmação ou elucidação do diagnóstico ou hipótese clínica e na elaboração do prognóstico. Muitas doenças apresentam quadro clínico característico, sugestivo ou patognomônico, dispensando, quando necessário, a realização de exames complementares. Contudo, sendo os exames complementares auxiliares do diagnóstico, freqüentemente são indispensáveis na elaboração de um diagnóstico seguro.
Quando da solicitação de exames complementares, devemos saber exatamente suas indicações e limitações. Segundo Tommasi (2002), os exames complementares podem ser divididos em inespecíficos, semi-específicos e específicos. Na maioria das vezes, a biopsia e consequente exame histopatológico do material obtido é uma prova laboratorial específica, já que possibilita o diagnóstico definitivo de entidades mórbidas. Certamente a biopsia é o exame complementar mais útil em Odontologia, depois da imaginologia, apesar de representar uma manobra relativamente segura, rápida e simples. No entanto, a utilização da biopsia pelo cirurgião-dentista é proporcionalmente insignificante.
Conceitualmente, a biopsia representa remoção de um fragmento de tecido vivo para estudo histológico, objetivando o diagnóstico de tecidos supostamente alterados, sendo praticamente isenta de contra-indicações. Apesar de ser o mais importante recurso diagnóstico do câncer bucal, a biopsia tem maiores aplicações em lesões benignas, uma vez que são mais freqüentes que as malignas.(Tommasi, 2002). Ainda para o mesmo autor, a fidelidade da biopsia é de aproximadamente 100%, quando bem orientada e procedida de forma correta.
Como parâmetro básico, pode-se dizer que toda lesão cuja história e aspectos clínicos não permitam um diagnóstico e que não apresente melhora num período não superior a duas semanas, deve ser submetido à biopsia, que pode ser incisional ou excisional, conforme a radicalidade do tecido removido.
A boca é parte integrante do sistema digestivo, onde se processa a salivação, gustação, mastigação e a deglutição. A cavidade bucal humana é um ambiente úmido, com temperatura relativamente constante ( 34 a 36ºC ), com pH variando na maioria das vezes entre ligeiramente ácido e neutro, hospedando mais de 300 espécies de microorganismos diferentes, incluindo bactérias, vírus, fungos, bastonetes e demais espécies. Esse Ecossistema sofre variação de local, idade, fluxo salivar e condições bucais. Logo após o nascimento a cavidade bucal apresenta-se estéril e depois de aproximadamente 6 horas, ocorre rápido aumento do número de espécies microbianas viáveis ( Román & Jacobo, 2003).
A língua, por sua vez, é formada por uma massa de tecido muscular móvel, estriado e recoberto por mucosa de estrutura variável. Na superfície inferior ou ventre da língua a mucosa é lisa, enquanto que na face oposta ou dorso apresenta-se com superfície irregular graças à presença das papilas. A função fisiológica da língua esta relacionada à gustação, fonação e deglutição. As papilas filiformes, fungiformes e valadas, estão amplamente distribuídas na face superior, em números e funções distintas. Sua inervação é motora, sensitiva e especial (gustação). As artérias linguais, derivadas das artérias carótidas externas e as veias linguais, derivadas pelas veias jugulares respondem pela sua vascularização. Dessa forma, qualquer injúria nesse órgão pode comprometer suas importantes funções. Ultimamente devido ao modismo, a língua tem sido utilizada para outros fins, com a colocação de jóias ou piercings, como forma de ornamentos ou alegorias. O uso e os malefícios do piercing na boca é um assunto polêmico que transcende quaisquer ponderações ideológicas, culturais e até do imaginário, uma vez que esse artifício é utilizado em todas faixas etárias, sexo ou raça.
O uso do piercing, jóia ou body piercing (corpo perfurado) é utilizado há mais de cinco mil anos na Indonésia, Roma, Egito e outros povos, por razões religiosas, culturais, políticas, como adorno, ou até mesmo para identificação de escravos. No mundo moderno, os piercings ganharam força na Europa através do movimento “hippie”, nos anos 60 e 70, sendo posteriormente difundido por volta dos anos 80 pelos “punks”, como forma de protesto. Atualmente, existem Congressos e Associações de piercings espalhados pelo mundo. No Brasil, o piercing ganhou espaço entre os adolescentes a partir de 1995, do modismo advindo principalmente da Europa. Em São Paulo, estão concentrados o maior número de estúdios ou colocadores de piercing, conhecidos popularmente como piercers. (Cerri 2001). O uso do body piercing, ao contrário de outros modismos parece que veio para se instalar definitivamente entre os jovens. Dessa forma os malefícios atribuídos a esse artifício tendem a aumentar a medida que o numero de usuários dessa mania também cresce. Assim sendo é de fundamental importância que se conheça as enfermidades oriundas dessa nova moda.

REVISÃO DE LITERATURA

Friedel et al. (2003) apresentam um caso clínico de endocardite bacteriana num jovem, após a instalação de piercing na língua.
López-Jornet e Camacho-Alonso (2006) publicaram um estudo com 98 pacientes usuários de piercing oral com 23 casos de retração gengival e 13 casos de danos à estrutura dental.
Pearose et al. (2006) apresentaram um estudo feito através de questionários enviados a alunos do ensino médio em Buffalo (EUA) e obtiveram como resposta a ocorrência de efeitos colaterais após a colocação de piercing em 10% dos usuários, que incluíam: Dor, perda de paladar, inchaço, sangramento e secreção purulenta.
De Moor R. et al (2007) descrevem como possíveis riscos do uso de piercing na boca a hemorragia, edema e infecção, além de retração gengival, fratura dental, sialorréia, acúmulo de cálculo dental e dificuldades na fonação.
Levin & Zadik (2007) fizeram uma revisão de literatura sobre o uso de piercing na boca e encontraram uma prevalência de edema e infecção em 24 dos pacientes, dor em 71%, fraturas dentais em 14% e retração gengival em 19%.
Garcia-Pola et al (2008) avaliaram a cavidade oral de 2266 pacientes e destes, 83 eram usuários de piercing. 59% dos pacientes relataram complicações após a instalação do piercing, sendo 40,9% com dor, 10,8% com infecção local e 7,2% com hemorragia.

MATERIAL E MÉTODO

A presente pesquisa baseou-se na análise histopatológica obtida pela biópsia incisional da mucosa lingual onde se encontravam inseridos “piercings” de todos os tipos e modelos. Para esse fim, foram selecionados 100 pacientes maiores de idade, de ambos os sexos que apresentavam “piercing” na língua, independente do tempo de uso, material ou modelo da jóia. Em vista da dificuldade em se estabelecer à composição física do “piercing”, esse fato não foi considerado para o estudo em questão.
Do total de pacientes biopsiados, 68 eram homens e 32 mulheres, com idade variando entre o mínimo de 18 e o máximo de 25 anos e idade média de 20 anos. A exclusão de menores de idade está alicerçada na Lei Estadual 9828, de 1997 que proíbe a colocação de piercing em menores de idade, mesmo com a autorização dos pais. Foram utilizados para esta pesquisa os pacientes que por qualquer motivo procuraram a clínica da Faculdade de Odontologia da Unisa.
Todos os pacientes foram submetidos a exame clínico e físico detalhado antes da realização da biopsia, perquirindo hábitos nocivos, como uso de tabaco e álcool, além da aferição da pressão arterial, realizada por meio de estetoscópio e esfigmomanômetro com critérios estabelecidos pela American Heart Association (2006). Para os hábitos relacionados ao álcool e fumo, estabeleceu-se o seguinte critério: Foram considerados usuários de álcool aqueles que ingeriam bebida fermentada ou destilada pelo menos quatro vezes por semana. Por outro lado, foram considerados fumantes todos aqueles que fumavam todos os dias independente da quantidade ou tipo.
Por motivos óbvios, aqueles que apresentavam contra-indicação cirúrgica ou que recusaram-se a assinar o termo de consentimento livre e esclarecido foram excluídos. Nesse sentido foram dispensados aproximadamente 13 pacientes. É importante ressaltar que a pesquisa obteve parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa da UNISA sob o número 52/2002.
Os pacientes participantes selecionados faziam uso sistemático do “piercing”, pelo menos há 6 meses. O tempo máximo de utilização da jóia utilizada pelos pacientes foi de 5 anos e média de 2,2 anos de uso.
As biopsias foram realizadas na clínica de Estomatologia da UNISA, seguindo-se os rígidos padrões de biossegurança que o procedimento demanda. Antes do ato cirúrgico os pacientes eram orientados a remover o “piercing” e submetidos a bochechos de clorexidina 0,12%. O acesso cirúrgico foi feito pela parte dorsal ou ventral da língua, onde o “piercing” estava alojado. Os fragmentos removidos mediam em média de três milímetros incluindo a mucosa interna que se encontrava em contato com a haste ou corpo do “piercing”. O material removido era colocado em formol a 10% e enviado para análise com as respectivas informações.
A opção da biopsia incisional pelo dorso ou ventre da língua baseou-se no aspecto clínico mais sugestivo, sendo que os resultados não apresentaram diferenças significativas quanto ao local de retirada do espécime. A incisão foi feita com o “punch” número 3, objetivando-se uniformidade de conduta e sutura com fio de seda 4-0.
A anestesia foi do tipo peri-lesional, com agulha curta siliconada e anestésico a base de prilocaína e octapressin como vasoconstrictor.
Todas as biopsias foram processadas pelo mesmo laboratório. Após a biópsia, os pacientes recebiam as devidas orientações pós-operatórias de praxe e de assepsia, sendo que a recolocação posterior da jóia ficou a critério do usuário. Antes, porém a jóia era submetida à assepsia química com glutaraldeído a 2%.
Os resultados histopatológicos provenientes da biopsia incisional eram esclarecidos e entregues aos pacientes mediante recibo e esclarecimentos. É importante ressaltar que os pacientes foram acompanhados por três e seis meses após a cirurgia ( biopsia ). Em caso de necessidade os pacientes eram encaminhados à disciplina de Estomatologia da Unisa, para complementação de tratamento clínico e/ou cirúrgico dependendo de cada caso e necessidade.
Para melhor entendimento e objetividade os resultados serão apresentados em números absolutos e percentuais sob a forma de tabela.

RESULTADOS

Após a análise histopatológica do material removido da língua dos pacientes, obtiveram-se os seguintes resultados:

 

ALTERAÇÃO TECIDUAL Nr. ABSOLUTO PERCENTUAL
Processo Inflamatório Crônico Inespecífico 55 55%
Hiperplasia fibro-epitelial 13 13%
Mucocele 08 8%
Leucoplasia 09 9%
Papiloma 03 3%
Displasia Epitelial 07 7%
Fibroma 05 5%
TOTAL 100 100,00%

DISCUSSÃO

Os resultados obtidos demonstram que 100% dos pacientes possuem alguma alteração tecidual na região de inserção do piercing. Estas alterações vão desde um simples processo inflamatório sem maiores conseqüências até casos de lesões cancerizáveis como a leucoplasia e em 7 pacientes, a presença de displasia epitelial. Muito se discute na literatura à respeito do potencial carcinogênico do trauma na mucosa oral. Ora, sabendo-se que o câncer é uma doença multifatorial e que as observações clínicas muitas vezes apresentam traumas evidentes em áreas de ocorrência de neoplasias malignas, acreditamos que não se possa afirmar, nem descartar esta possibilidade. A exemplo do que ocorre com o câncer de pulmão que reconhecidamente é associado ao hábito de fumar, mas que usualmente leva décadas para ocorrer, pode ser que o tempo de uso do piercing ou de qualquer outro trauma crônico na mucosa oral reflita num aumento dos casos de câncer bucal a longo prazo.
Portanto, os pacientes devem ser orientados no sentido de não utilizarem desse adorno, em vista de suas implicações.

CONCLUSÕES

A utilização de piercings na mucosa oral é uma realidade nos dias atuais e o Cirurgião Dentista tem a obrigação de alertar seus pacientes para os riscos potenciais e malefícios que esta prática representam.
Todos os pacientes estudados apresentaram algum tipo de alteração tecidual na área de inserção do piercing na língua.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Endereço Institucional dos autores:
Universidade de Santo Amaro – UNISA
Rua Enéas de Siqueira Neto, 340 – Jd. Das Imbuias
São Paulo – SP

Endereço de todos os autores para correspondência:
Rua Pelotas, 358 – Vila Mariana – São Paulo – SP – CEP 04012-001

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